Por
Marcelo Barbosa
E
prossegue, como era de se esperar, o ciclo de avaliações das causas do golpe judicial-parlamentar
em curso. A maioria dessas reflexões aponta numa direção: o suposto caráter
excessivamente amplo das alianças praticadas pelo governo do PT e de seus parceiros.
Outras autocríticas, mais afeitas ao aspecto programático, ressaltam a falta de
projeto estratégico das administrações petistas desde a posse de Lula, em 2003,
crítica essa a qual me filio. Saindo da política (pelo menos em sentido
imediato), também há reparos de natureza teórica surgindo. Um deles, a acusação
o de que atitude do PT, no poder, seria “republicana” demais. Por essa ótica,
Lula, e depois Dilma, teriam confiado em demasia no compromisso das elites com
uma legalidade democrática a que essas mesmas classes dominantes não hesitaram
em romper desde o momento da eleição de 2014.
Mas, será que as esquerdas à frente do governo – fica a pergunta – foram
tão republicanas assim?
Responder
a essa questão, de forma categórica, demanda um conhecimento especializado o
qual, francamente, não disponho. Só me aventuro por esse debate por uma razão:
a sua natureza não exclusivamente acadêmica. Isto é, atribuir alguma
significação a termos como “legalidade” ou ainda “republicanismo” responde a
necessidades práticas, derivadas do enfrentamento cotidiano ditado pela
política.
Sendo
assim, não cabe nesse texto a promoção de uma exegese dos trabalhos de autores
como Pettit, Skinner ou ainda Habermas, nem fornecer uma definição pronta do
que se possa entender por republicanismo ou neorrepublicanismo*. Cumpre apenas
constatar a irrupção, nas últimas décadas, de uma junção de diferentes
abordagens, presentes sobretudo nas áreas dos estudos jurídicos e da filosofia
política, tendo por pressuposto a recuperação da importância da expressão
latina res publica (coisa pública),
contraposta à res privata (a esfera
privada e familiar) e, por fio condutor, a prevalência do interesse coletivo
sobre o particular. Repartido em infinidade de correntes, o republicanismo se
une, no entanto, na defesa da ampliação dos espaços de soberania popular, desde
que conjugada à manutenção dos procedimentos formais de alternância de poder e respeito
às minorias, garantias sem as quais a forma de governo denominada república sofre o risco de derivar para
a autocracia e o despotismo.
É
possível depreender, o republicanismo contemporâneo encontrou ressonância na
qualidade de resposta à crise que as duas maiores tendências da esquerda
mundial – o socialismo e a socialdemocracia – experimentaram nos últimos
quarenta anos. Não à toa, a corrente atingiu o ponto culminante de sua
influência por ocasião do marco simbólico da queda do Muro de Berlim. Coincidentemente,
o marxismo, nessa mesma quadra, também atravessava uma forte crise de
descrédito, em todas as suas ramificações, por sua (alegada) incapacidade de
conciliar a busca da igualdade com a liberdade dos indivíduos. Em tais
condições, o atrativo republicanista era quase irresistível: tratava-se da
única manifestação de pensamento social com capacidade de travar a disputa ideológica
com o liberalismo em igualdade condições. Sem maior divulgação nos círculos do
sindicalismo e dos movimentos operário tradicional, a retórica republicana de
acesso a direitos fundamentais ecoou, no entanto, fortemente nos chamados
movimentos sociais, para cobrar: acesso à moradia, à terra, à saúde,
informação, à políticas inclusivas como bolsa família**.
Acredito
que possa invocar a minha experiência pessoal – durante os anos noventa do
século XX – para reconstituir a influência das versões republicanas, sobretudo
a de Habermas, sob a minha área de atuação profissional, o direito. Para nós,
operadores jurídicos (pelo menos aqueles comprometidos com a democracia e o
socialismo) era como se uma nova aurora se anunciasse no terreno das ciências
da sociedade. E que o campo teórico capaz de reunir de Marx a Gramsci
encontrasse atualização nas (então) recentes contribuições reunidas em obras
como Para a reconstrução do Materialismo Histórico, possibilitando, assim, o
diálogo entre as tradições revolucionárias de 1917 e de 1789. A pedra de toque
desse relacionamento? A categoria designada “bem comum”. Um conceito que, muito
condizente com nossas expectativas (mas também com nossas ilusões), permitia
enunciar conteúdos muito distintos, sob o manto de uma indeterminação
convertida em virtude.
Vítima
do próprio sucesso, o republicanismo sofreu a má fortuna de todas as expressões
teóricas que deixam o mundo da academia para reinar no senso comum da mídia, dos
programas partidários e das conversas de botequim: deslocou-se seu sentido
originário. A prevalência do interesse coletivo sobre os interesses privados
transmutou-se – atendendo ao imaginário das camadas médias brasileiras – em
luta contra o patrimonialismo das velhas elites e esforço de erradicação do
fenômeno da corrupção administrativa (tudo como se a corrupção não fosse algo
de inato ao capitalismo). Sensível a essa agenda, os governos da presidenta
Dilma, sobrelevaram a moralidade sobre todos os demais princípios dentro
administração pública. Um equívoco, sem dúvida. Não é preciso ser republicano
para entender que, numa democracia representativa, o respeito ao império da lei
assume prevalência e subordina todos os demais princípios.
Resumo
da ópera: o nosso governo e seus aliados permitiram, por amor à transparência e
a “boa governança”, a partir de 2013, a germinação e o desenvolvimento de um
foco conspirativo dentro do aparelho de Estado, intitulado Operação Lava Jato.
Republicanismo em excesso? Tudo a leva a pensar em contrário. Uma democracia
digna desse nome deve, primeiramente, assegurar a todos (inclusive a
empreiteiros supostamente corruptos) o acesso a garantias individuais consagradas
desde o iluminismo, tais como o habeas corpus, a presunção de inocência, o
amplo direito de defesa ou princípio do contraditório. Caso contrário, aos
poucos, deixa de ser uma democracia. Transforma-se, paulatinamente, em um
Estado de Exceção, no qual se pode cometer toda a sorte de arbitrariedades, inclusive
remover do cargo uma governante sem crime de responsabilidade.
*
Para uma panorâmica do republicanismo (ou neorrepublicanismo), aconselho o
contato com textos de um autor que, curiosamente, não se define como
estritamente republicanista: BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 3. ed. Rio
de Janeiro: Paz e terra, 1987.
**
No Brasil, o momento mais luminoso dessa voga republicanista, sem dúvida,
aconteceu durante o período da luta contra as privatizações de empresas
públicas sob o consulado FHC. Momento em que esse “significante vazio” – para
usar o jargão lacaniano – chamado bem
comum, serviu de intercessão entre as aspirações de atores sociais muito distintos,
empurrando o movimento sindical sadiamente de sua pauta econômica para uma
parceria com esse mesmo Ministério Público Federal – hoje tão macartista e
apequenado – na luta pela soberania econômica do povo brasileiro. Sem essa
coalizão, o processo de privatizações daquela era teria sido imensamente mais
lesivo, incluindo Petrobrás e o Banco do Brasil na cesta de patrimônios do povo
brasileiro oferecidos na bacia das almas ao capital financeiro internacional. Vibrando
na memória dos lutadores sociais, essa página de luta inscreveu o
republicanismo, definitivamente, no rol das contribuições teóricas ao arsenal
de guerra do pensamento social progressista.
Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela
UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros,
de A
Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação
do Brasil no século XIX