21 de fevereiro de 2017

Os governos do PT e a burguesia “nacional”


Por Marcelo Barbosa

Em tom de condenação, alguns setores do campo democrático-popular “acusam” os governos do PT e de seus aliados de promoverem, nos últimos 13 anos, uma suposta conciliação entre as forças do capital e do trabalho, em favor de um projeto de (limitado) crescimento econômico com (restrita) distribuição de renda. Por esse ponto de vista, a atual ruptura institucional que o país atravessa seria decorrente do esgotamento de uma “tática” pautada pela moderação de atitudes no campo da economia (obediência ao chamado tripé macroeconômico) e da política (alianças pela governabilidade). Diante de tal diagnóstico – bastante crítico, por sinal – caberia indagar, tendo em vista o muito de positivo que ocorreu no Brasil desde janeiro de 2003: em que medida teria sido possível fazer diferente do foi feito?

Sem querer assumir o papel de advogado das escolhas do PT – algumas bem equivocadas, a exemplo da reforma da previdência, em 2003 – considero útil a reconstituição (sintética que seja) das condições nas quais os chamados governos progressistas foram chamados a assumir o poder. Em particular, a conjuntura de cerco produzida à época. Um quadro composto por enormes dificuldades, entre as quais duas quase insuperáveis: o risco de uma moratória das dívidas interna e externa por conta do estado de insolvência do país após o consulado FHC somado à extrema fragilidade da sustentação de um presidente vitorioso nas urnas, mas sem maioria no Legislativo. Para agravar situação, a nova ordem precisava, ainda, no plano simbólico, corresponder às expectativas, geradas aqui e no exterior, pela a investida da esquerda ao poder numa região do Terceiro Mundo considerada quintal da dominação neoliberal.

Como responder a esse tipo de desafio? No início do primeiro governo Lula, essa dúvida frequentava a mente de todos aqueles, de alguma maneira, envolvidos nos esforços de consolidação do governo progressista. No caso, o repertório de escolhas preconizado pelas tendências mais à esquerda – inclusive aquelas com representação dentro do próprio PT – envolvia a valorização dos ensinamentos da tradição marxista, em especial, o rompimento e a denúncia das limitações da democracia parlamentar, com a correspondente ênfase na organização e mobilização dos setores de baixo da pirâmide social. Caminho esse recusado pela liderança petista, por várias razões. A mais expressiva delas, a hipoteca a ser quitada por esse tipo de opção, em particular a necessidade de garantir a sobrevivência da nova ordem por todo tipo de meios, inclusive aqueles completamente alheios à prática dos partidos de massa, como o recurso à violência revolucionária presente na opção pela luta armada ou a guerra civil.

Afastada a via do enfrentamento, incumbia a montagem de alianças não só políticas, mas também sociais. Para atender ao primeiro critério – após uma desastrada tentativa de uma coalizão com partidos de aluguel – surgiu a proposta de ação conjunta com o malsinado PMDB. E visando promover a sustentação do governo do PT e de seus aliados com a sociedade civil, em especial junto às entidades de representação empresarial, começou a se desenhar, especialmente a partir da posse de Guido Mantega na pasta da Fazenda, um diálogo com a chamada burguesia “nacional”.

Esse entendimento não buscou, ao contrário de certas interpretações, criar condições para a continuidade da aplicação, sob novas condições, das diretrizes neoliberais praticadas durante o consulado tucano. Tampouco o PT – ainda fortemente atado à sua origem no sindicalismo e nos movimentos sociais – tornou-se uma representação partidária do grande capital, como pretenderam alguns autores, abusando da dialética. Ao inverso, os termos da negociação entre as forças do capital e do trabalho, naquele dado momento histórico, visaram a adoção de uma orientação econômica alternativa á receita intitulada pelos analistas do “Consenso de Washington”.

Parceira – pouco confiável – na criação de um ambiente econômico livre da coerção neoliberal, a chamada burguesia “nacional”, por volta da primeira década do século XXI, havia perdido qualquer pretensão à autonomia que tivesse cultivado, no passado, fosse em 1930 ou no pré-64. Acostumara-se a ser tutelada: primeiro pelos militares durante a ditadura civil-militar e, em seguida, pelos rentistas da alta finança, no consulado tucano. Sem a menor cerimônia deslocara-se à direita no AI-5, para duas décadas depois, derivar ao centro, na promulgação da Constituição de 1988. Muito provavelmente, por isso, quando a esquerda triunfou nas eleições de outubro de 2002, as elites empresariais “nacionais” não endossaram as políticas de desestabilização do novo poder propostas pelo consórcio entre os bancos de investimento, mídia monopolista e das empresas transnacionais, a quem se poderia designar por burguesia “associada”. Isto é, o empresariado nacional preferiu “pagar para ver” e esperar a atitude dos (então) novos ocupantes do Planalto.

Coerente com a sua atitude de prudência – ditada pela necessidade de romper o isolamento político que lhe queriam impor – o PT e seus parceiros aceitaram a aproximação não só da parcela produtiva do capital brasileiro, como também de franjas do rentismo representadas pelos bancos de varejo. Foram complexos os protocolos referentes ao relacionamento entre classes antagônicas registrada no período. Não cabe aqui comentar em detalhe os itens dessa aliança, exceto um aspecto: entre 2005 e pelo menos 2011, os sucessivos governos progressistas asseguraram uma orientação ao capitalismo brasileiro bastante favorável à expansão das oportunidades de lucro das empresas nacionais, por via do crescimento do mercado interno e da massa salarial. Todos os setores produtivos – e de crédito – se beneficiaram dessa espiral, reforçando, pelo alto, a sustentação política de Lula e de Dilma. Contudo, áreas como a indústria naval, aeronáutica (Embraer) e a engenharia de projetos (em especial no ramo da exploração de petróleo), entre outros, se credenciaram a participar de algo mais do que coalizões de poder episódicas. Por seu poder de empuxo sobre a economia e capacidade de associação com o Estado, tais segmentos produtivos se destacaram pela capacidade de integração do progresso técnico ao processo produtivo e geração de mão de obra qualificada. Algo de precioso em países em desenvolvimento.

Olhando em retrospecto, a simbiose de interesses entre diversas classes ou frações de classes – inclusive o setor mais dinâmico da burguesia ­– encontraria seu melhor desempenho, é de se presumir, caso incluída no âmbito de um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de abarcar não apenas objetivos econômicos, mas sobretudo conquistas políticas e sociais. Essa agenda, apenas rascunhada pela liderança petista, jamais foi elevada à condição de arte-final. Possivelmente em face do seu potencial de conflito. No entanto, tal explicitação dos interesses da representação dos trabalhadores dentro da aliança era de fundamental importância, pois serviria de antídoto contra a doença mais frequente nos processos de frente comum entre capital e trabalho: a ilusão de classe.

Retornando à pergunta que nos trouxe aqui, ao que tudo indica, não consistiu num equívoco apostar numa política de alianças sociais amplas, capazes de integrar a “burguesia” na base de sustentação dos governos progressistas. Provavelmente, não havia outra atitude a ser tomada. A falha – pelo menos até o momento – foi não distinguir entre os diferentes setores das elites empresariais e seus distintos interesses – ora antagônicos, ora complementares – a um projeto nacional de desenvolvimento com distribuição de renda. É de se desejar que ainda haja tempo para uma correção de rumos.


Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX



O comportamento da burguesia “nacional” nas crises políticas


Por Marcelo Barbosa

Diante de mais um episódio de interrupção da experiência democrática brasileira – o mais grave desde 1964 – os setores da esquerda se voltam para a reflexão, promovendo um balanço de erros e acertos do ciclo iniciado com a posse de Lula, em 2003. Entre os itens sob exame, o estado das relações entre capital e trabalho. Para muitos, os governos do PT e seus aliados fizeram uma aposta equivocada: julgaram possível uma aliança de classes, estável no longo prazo, em torno da execução de um programa de crescimento econômico com distribuição de renda (ainda que limitada). Na opinião dos adeptos de profecias autorrealizadas, esse esforço, desde o seu início, se via condenado ao insucesso. Por muitas razões, mas com destaque para a inconstância das atitudes de um dos sócios do “empreendimento”, a chamada burguesia “nacional”.
Por certo, essa dissensão entre as esquerdas se espalha por outros tópicos: formato da frente política, projeções estratégicas, limites da luta institucional, aspectos programáticos e muito mais. No entanto, por considerar não só viável – mas também necessário – o relacionamento da área progressista com setores do centro, parece ser importante buscar alguma compreensão do comportamento do grande e médio capital na arena política. Isso pode ser bom para nos livrar tanto do preconceito quanto da ilusão.

A primeira dificuldade a uma investigação das motivações das elites empresariais concerne ao debate em torno da adequação e abrangência do termo burguesia para classificar tais estratos*. Como se sabe, na descrição dessa classe presente na obra de Marx e seus discípulos – orientada para a reconstituição do seu papel na reprodução material e ideológica do capitalismo – emerge um recorte muito preciso: trata-se do seguimento homogêneo em termos sociais, psicológicos e por vezes, religiosos, que detém a propriedade das riquezas e dos meios de produção e, portanto, concentra o poder econômico e político numa sociedade capitalista. Homogeneidade que, na hipótese, não implica ausência de diferenciações, pois o setor apresenta inúmeras distinções em relações à sua escala: grande, pequena e média burguesia. Ou, ainda, quanto às atividades de onde irradia influência: comércio, indústria, bancos, agronegócio, produção de serviços, entre outros ramos.

Não cabe, neste espaço, questionar a validade dessa caracterização obtida junto aos clássicos. Terminologicamente adequado, ou não, o conceito de burguesia ocupa lugar de destaque no panorama do pensamento social brasileiro, em especial no que se refere às discussões acerca do caráter “nacional” ou “entreguista” das elites empresariais. E, com registros absolutamente distintos, refletindo a pluralidade do debate sobre o tema. Na tradição cepalina – isebiana (convalidada pelas teses do PCB, no pré-64), os processos de industrialização em curso a partir de 1930, teriam por consequencia o acirramento das contradições entre os interesses econômicos locais e os externos, gerando em setores das classes dominantes a consciência da necessidade de uma aliança com o proletariado, com vistas ao estabelecimento de um desenvolvimento capitalista independente no país, esse último concebido como via de erradicação do atraso estrutural brasileiro em termos políticos, sociais e econômicos, em especial no que diz respeito à sua estrutura agrária.

Refutando a visão cepalina, os próceres da chamada teoria da dependência negaram à burguesia “brasileira” um caráter autônomo. Na crença dos setores ligados a essa interpretação do desenvolvimento histórico do país, mesmo no período anterior ao golpe militar-civil de 1964, e da conseqüente passagem do capitalismo brasileiro a uma etapa monopolista, a atitude que singularizaria o empresariado da nossa periferia – nada obstante a presença de conflitos sobre questões secundárias – seria o alinhamento aos países centrais e suas empresas. Ou seja, ao segmento nacional dos capitalistas, qualquer processo de democratização profunda da sociedade que acenasse para a modificação do perfil de distribuição de renda e a conseqüente afirmação (tímida que fosse) do caráter social do regime de propriedade seria inaceitável. Assim, entre se aliar ao povo ou à alta finança internacional, a burguesia brasileira sempre historicamente preferiu a segunda opção.

Aparentemente, o julgamento implacável da história parece ter dado razão aos teóricos da dependência. De fato, todo o debate, inclusive acadêmico, aqui e lá fora, evoluiu no sentido de negar um caráter autônomo às aspirações do empresariado dos países periféricos. Neste sentido, o termo “burguesia interna”, formulado por Poulantzas ainda no período de gestação do neoliberialismo – em meio à década de 1970 – talvez substitua, com vantagem, a categoria “burguesia nacional”, pois tem o mérito de sinalizar a necessidade de identificar as mudanças no comportamento dessa fração de classe nos quadros da chamada “globalização”, particularmente a diminuição do ímpeto antiimperialista desse ator social.

Mesmo assim, caberia liminarmente, enunciar a seguinte ordem de reserva ao argumento dos teóricos da dependência: mais do que o alinhamento ao imperialismo, o que distingue o comportamento da representação política do capital, tratada nos clássicos por “burguesia nacional”, é o caráter pendular de sua atuação. Assim, no século XX, esse segmento esteve junto ao povo em 1930, 1961, 1985 e 1988 (na promulgação da Constituição). Em contrário procedimento, vinculou-se à reação interna e externa, nos episódios do Estado novo de 1937, na tentativa golpista de 1954, no movimento civil-militar de 1964 e por fim, no consulado de FHC, iniciado em 1994. Seria interessante indagar em que medida as oscilações periódicas da burguesia “nacional” em direção à posições antidemocráticas, para além da influência de fatores objetivos como o aprofundamento das crises cíclicas do capitalismo, não acusam a falta de vocação hegemônica da nossa esquerda no domínio de itens decisivos à conquista e manutenção do poder político: capacidade de mobilização, clareza programática e unidade orgânica de seus agrupamentos, em especial, nas conjunturas históricas como a desse agitado 2016.

Podemos concluir, portanto, a observação da realidade não deu razão e – nem desmentiu inteiramente – nenhuma das duas grandes vertentes explicativas do comportamento das elites empresariais brasileiras. Porém, tornou visíveis, aos agrupamentos da esquerda do espectro político, os riscos subjacentes à aplicação unilateral dos postulados de qualquer uma das duas teses: de um lado, a ameaça da” ilusão de classe” na projeção cepalina e do outro, do isolamento político, na interpretação da dependência.

(*) Será que não deveríamos estar mais atentos à irrupção de uma nova – em termos históricos – camada social que, em condomínio com a burguesia tradicional, governaria o mundo pelo manejo da informação, ciência e da técnica, estando encarregada da administração e reprodução simbólica do capitalismo? Isto é, a parcela dos bilionários do clube do 1%, detentor de mais de 50% da renda mundial: financistas, especialistas em marketing, cientistas, astros da música, cinema e esporte, tecnoburocratas em geral. Nos Gundrisse, Marx alertou para a possibilidade de uma parcela da sociedade com essas características vir a tornar-se dominante.


Publicado no blog Plataforma Política Social.


Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX