24 de novembro de 2015

Enguiço das Instituições


Por Marcelo Barbosa
Existe algo de profundamente humano no ato de confundir desejo e realidade. Ninguém escapa ao tropeço no ilusório. De se perder em idealizações entre as coisas “como são” e como gostaríamos que fossem. Nada mais natural, especialmente quando se sabe que o mais alucinado dos devaneios sempre guarda um quê de verossímil, um pezinho na racionalidade. Agora mesmo, em meio à crise (econômica ou política, ao gosto do freguês), o mecanismo de evasão se repete: da imprensa à academia, raiando pelo judiciário, todo mundo exalta a solidez das nossas instituições. A narrativa da heroicidade de nosso Ministério Público, da CGU e da Polícia Federal segue espalhada por todos os territórios do maltratado imaginário cívico brasileiro. Quem não vibra ou não vibrou com isso?  Quem não quer – ressalvada a minoria que se locupleta – o completo saneamento da vida pública desse território ao sul do Equador que espera deixar de ser o país do futuro para tornar-se o lugar das promessas realizadas? Um sonho, sem dúvida. Mas, tão real quanto qualquer outra das manifestações do desejo, entre as quais a paixão. O problema acontece quando a fantasia ameaça descambar para o pesadelo.
Lastimo ser mensageiro de más notícias: nossas instituições, desde o início da turbulência acelerada após a posse do segundo governo da presidenta Dilma, funcionam mal.
Sintomas dessa disfunção se acumulam: no Congresso, uma maioria de ocasião, formada por deputados lobistas legisla em função de interesses do grande capital, do fundamentalismo religioso e da indústria de armas; no judiciário, magistrados acoelhados diante de uma opinião pública que “pede sangue”, se omitem em garantir o amplo direito de defesa e o princípio da inocência presumida; as agências do Poder Público, entre as quais a PGR, CGU e Polícia Federal, com as exceções de praxe, fazem política partidária sem nenhuma cerimônia, investigando e apurando, seletivamente, denúncias de corrupção associadas ao governo Federal e fazendo vista grossa dos suspeitos da oposição (mais numerosos que os do governo, diga-se de passagem). O quadro só não é pior na medida em que, até o momento, as Forças Armadas têm se comportado com exemplar moderação e respeito à lei. Se isso é bom funcionamento das instituições, imagina o que seria o colapso.
Quem for buscar explicação para esse mal-estar, tende a tropeçar no paradoxo. Seria como comparar a democracia brasileira a uma orquestra sinfônica que, em determinado momento, apesar da qualidade do repertório e conjunto, perde excelência e começa a desafinar em público. É frustrante. Porém, quem assistiu às apresentações do ensemble, num passado mesmo recente, jamais esquece.
A metáfora aplica-se às instituições brasileiras. Por mais que experimentem um mau momento, não lhes falta qualidade. Pelo contrário, nossas instituições tiveram origem num processo histórico único. Sua modelagem surgiu de anseios políticos e sociais inscritos na elaboração da Carta Constitucional de 1988. Reflete, portanto, uma correlação de forças irrepetida, desde então, onde o Centro Conservador deslocou-se em direção a posições democráticas e, por outro lado, a capacidade de mobilização das esquerdas – via greves, protestos, ocupações de terras ou mesmo desempenho eleitoral – atingiu seu ponto ótimo. Resultado: um pacto político que, ainda que inscrito nos limites do capitalismo, assegurou liberdades civis e direitos sociais coletivos dos mais avançados em todo Ocidente.
Em artigos anteriores (*) pude fazer o elogio da Carta de 1988. Não vou me repetir. Pretendo apenas sublinhar a qualidade dos dispositivos anticrise presentes no ordenamento constitucional, salvaguardas capazes de permitir proceder, com um mínimo de trauma, o impedimento do Presidente Collor, em 1993. Ou ainda, na contramão do resto do mundo, transitar de uma ordem econômica neoliberal para outra desenvolvimentista, notadamente a partir de 2005. Por fim, apenas para citar um exemplo recente, tais mecanismos da lei maior funcionaram como barreira de contenção ao afã despropositado da direita de fazer aprovar o financiamento empresarial de campanhas eleitorais.
Por que então, uma modelagem institucional tão cheia de êxito, exibe tantas insuficiências, agora? Como todo fenômeno social complexo, as causas costumam a ser variadas. Arrisco indicar uma delas: o déficit de ética de Estado nos agentes públicos brasileiros. A síndrome atinge todos os níveis da administração, seja nos municípios, estados ou União. Em todas as carreiras: magistrados, delegados, promotores, gestores, especialistas, não importa. Refletindo, talvez, o acirramento da luta política de classes, cada vez mais esses operadores assumem uma ética de partido e/ou de governo, transferindo para dentro do aparelho de Estado disputas que deveriam ser travadas no âmbito da sociedade civil, por meio de instrumentos de legitimação como as manifestações coletivas ou as eleições. Nenhuma república resiste a esse nível de estresse de suas instituições. A chamada operação Lava Jato ilustra isso.
O juiz Moro tem o direito de votar ou apoiar, no recesso da sua intimidade, a quem quiser. Só não deve induzir essas opiniões em suas sentenças e despachos, especialmente quando tais convicções contrariam a norma legal. E, nada mais distante do espírito e da literalidade da lei do que manter acusados encarcerados para obter “confissões”. É “medieval”, já o disseram mais de um ministro do STF. Qualquer pessoa comum, submetida a um tratamento desses, depois de algum tempo, assina qualquer coisa para obter a liberdade...
Os absurdos do juiz paranaense em matéria penal rivalizam com suas opiniões sobre matéria econômica. Causam imensos prejuízos materiais ao país. Configurando, de novo, ilegalidades flagrantes. Como se sabe, a Constituição da República consagra a proteção à empresa nacional. Que faz Moro? Destrói a capacidade de concorrência das áreas de projetos e engenharia, inclusive da Petrobrás e das empreiteiras locais, abrindo caminho para a desnacionalização da economia brasileira. Guiado por uma ratio ideológica, o magistrado não distingue – e isso parece proposital – a necessária apuração dos ilícitos penais da necessidade de manter em funcionamento uma estrutura produtiva que responde por mais de 13 por cento do PIB, gerando receitas e empregos para a população. Indagado sobre esse tipo de irresponsabilidade Moro declara – de preferência nos foros empresariais ligados ao PSDB, ao Partido Novo e outras instituições de inspiração neoliberal que freqüenta amiúde – que está combatendo o “custo Brasil”. Na certa, considera ingenuamente que as empreiteiras dos países centrais não pagam suborno... Realmente, com esse grau de alinhamento ideológico e partidário torna-se muito difícil fazer funcionar a contento um poder da importância do judiciário.
O samba das instituições brasileiras anda “atravessando” o enredo. Haverá esperança? Talvez. O pronunciamento da ministra Rosa Weber, ao inviabilizar a chicana regimental de Eduardo Cunha na tramitação do pedido de impeachment da Presidenta Dilma, revelou um novo caminho: o da afirmação de uma ética de Estado infensa a partido e governo. Quem sabe seja possível salvar a bela construção democrática aberta nos últimos 30 anos? Sonhar não custa nada e sonhos podem ser bem reais, como dizia o poeta popular.
(*) Refere-se ao texto Uma crise estrutural e política: publicado embaixo, neste blog, e no jornal Algo a Dizer (N.E.)

 

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