28 de novembro de 2015

A nova cara do golpe


Por Marcelo Barbosa

Em 2015, o Brasil tem servido de campo de experiência para técnicas de desestabilização de governos. Esse ano, ao que tudo indica, já são três os procedimentos utilizados.

No início do ano, a "tecnologia" foi a da clássica "orquestração" – expediente posto em prática nas chamadas "Revoluções de Veludo", no Leste Europeu e, em nosso subcontinente, na Venezuela: protestos de rua, locaute de caminhoneiros e bombardeio de saturação por parte da mídia, entre outros recursos.

Não deu certo, apesar do volume das manifestações de março.

Em seguida, foi a vez de lançar mão da tática do "Golpe Paraguaio". Assim, a contestação ao governo legitimamente eleito migrou para instâncias como o TCU e TSE. Também não funcionou. Afinal, a magistratura brasileira, ao contrário das percepções de áreas da esquerda e da direita brasileira, não constitui um poder reacionário, em si. Os juízes, em sua maioria, têm posições democráticas. Estão, na verdade, assustados diante do barulho produzido pelo golpismo, se abstendo – o que é grave – da sua tarefa de garantir o exercício dos direitos e garantias individuais e coletivos.

O terceiro experimento, ao que parece, se encontra em impulso. É a versão tupiniquim da operação "Mãos Limpas".

Trata-se de uma espiral de demolição de todo o sistema político brasileiro. Não deve ficar nada de pé. Tudo está sob suspeição: "as empresas públicas nas quais grassa a corrupção" (sic), "todos os partidos" (sic), o "Poder Executivo", e agora, a "novidade" da revelação das ligações perigosas entre o Senador Delcídio e pelo menos quatro ministros do STF, o que compromete o Judiciário.

Enfim, ganha foros de realidade uma narrativa na qual todo o conjunto da vida institucional brasileira está "apodrecida".

Quem ganha com isso?

É sempre muito difícil dizer. Podemos indagar ao passado, guardadas as diferenças. Na Itália, o processo gerou um novo bloco de poder formado pela mídia monopolista, substituindo os partidos (com o Berlusconi a frente), em aliança com a tecnocracia ligada ao capital financeiro, com o aval da OTAN.
Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ e diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos doensaio de interpretação do Brasil no século XIX



24 de novembro de 2015

Enguiço das Instituições


Por Marcelo Barbosa
Existe algo de profundamente humano no ato de confundir desejo e realidade. Ninguém escapa ao tropeço no ilusório. De se perder em idealizações entre as coisas “como são” e como gostaríamos que fossem. Nada mais natural, especialmente quando se sabe que o mais alucinado dos devaneios sempre guarda um quê de verossímil, um pezinho na racionalidade. Agora mesmo, em meio à crise (econômica ou política, ao gosto do freguês), o mecanismo de evasão se repete: da imprensa à academia, raiando pelo judiciário, todo mundo exalta a solidez das nossas instituições. A narrativa da heroicidade de nosso Ministério Público, da CGU e da Polícia Federal segue espalhada por todos os territórios do maltratado imaginário cívico brasileiro. Quem não vibra ou não vibrou com isso?  Quem não quer – ressalvada a minoria que se locupleta – o completo saneamento da vida pública desse território ao sul do Equador que espera deixar de ser o país do futuro para tornar-se o lugar das promessas realizadas? Um sonho, sem dúvida. Mas, tão real quanto qualquer outra das manifestações do desejo, entre as quais a paixão. O problema acontece quando a fantasia ameaça descambar para o pesadelo.
Lastimo ser mensageiro de más notícias: nossas instituições, desde o início da turbulência acelerada após a posse do segundo governo da presidenta Dilma, funcionam mal.
Sintomas dessa disfunção se acumulam: no Congresso, uma maioria de ocasião, formada por deputados lobistas legisla em função de interesses do grande capital, do fundamentalismo religioso e da indústria de armas; no judiciário, magistrados acoelhados diante de uma opinião pública que “pede sangue”, se omitem em garantir o amplo direito de defesa e o princípio da inocência presumida; as agências do Poder Público, entre as quais a PGR, CGU e Polícia Federal, com as exceções de praxe, fazem política partidária sem nenhuma cerimônia, investigando e apurando, seletivamente, denúncias de corrupção associadas ao governo Federal e fazendo vista grossa dos suspeitos da oposição (mais numerosos que os do governo, diga-se de passagem). O quadro só não é pior na medida em que, até o momento, as Forças Armadas têm se comportado com exemplar moderação e respeito à lei. Se isso é bom funcionamento das instituições, imagina o que seria o colapso.
Quem for buscar explicação para esse mal-estar, tende a tropeçar no paradoxo. Seria como comparar a democracia brasileira a uma orquestra sinfônica que, em determinado momento, apesar da qualidade do repertório e conjunto, perde excelência e começa a desafinar em público. É frustrante. Porém, quem assistiu às apresentações do ensemble, num passado mesmo recente, jamais esquece.
A metáfora aplica-se às instituições brasileiras. Por mais que experimentem um mau momento, não lhes falta qualidade. Pelo contrário, nossas instituições tiveram origem num processo histórico único. Sua modelagem surgiu de anseios políticos e sociais inscritos na elaboração da Carta Constitucional de 1988. Reflete, portanto, uma correlação de forças irrepetida, desde então, onde o Centro Conservador deslocou-se em direção a posições democráticas e, por outro lado, a capacidade de mobilização das esquerdas – via greves, protestos, ocupações de terras ou mesmo desempenho eleitoral – atingiu seu ponto ótimo. Resultado: um pacto político que, ainda que inscrito nos limites do capitalismo, assegurou liberdades civis e direitos sociais coletivos dos mais avançados em todo Ocidente.
Em artigos anteriores (*) pude fazer o elogio da Carta de 1988. Não vou me repetir. Pretendo apenas sublinhar a qualidade dos dispositivos anticrise presentes no ordenamento constitucional, salvaguardas capazes de permitir proceder, com um mínimo de trauma, o impedimento do Presidente Collor, em 1993. Ou ainda, na contramão do resto do mundo, transitar de uma ordem econômica neoliberal para outra desenvolvimentista, notadamente a partir de 2005. Por fim, apenas para citar um exemplo recente, tais mecanismos da lei maior funcionaram como barreira de contenção ao afã despropositado da direita de fazer aprovar o financiamento empresarial de campanhas eleitorais.
Por que então, uma modelagem institucional tão cheia de êxito, exibe tantas insuficiências, agora? Como todo fenômeno social complexo, as causas costumam a ser variadas. Arrisco indicar uma delas: o déficit de ética de Estado nos agentes públicos brasileiros. A síndrome atinge todos os níveis da administração, seja nos municípios, estados ou União. Em todas as carreiras: magistrados, delegados, promotores, gestores, especialistas, não importa. Refletindo, talvez, o acirramento da luta política de classes, cada vez mais esses operadores assumem uma ética de partido e/ou de governo, transferindo para dentro do aparelho de Estado disputas que deveriam ser travadas no âmbito da sociedade civil, por meio de instrumentos de legitimação como as manifestações coletivas ou as eleições. Nenhuma república resiste a esse nível de estresse de suas instituições. A chamada operação Lava Jato ilustra isso.
O juiz Moro tem o direito de votar ou apoiar, no recesso da sua intimidade, a quem quiser. Só não deve induzir essas opiniões em suas sentenças e despachos, especialmente quando tais convicções contrariam a norma legal. E, nada mais distante do espírito e da literalidade da lei do que manter acusados encarcerados para obter “confissões”. É “medieval”, já o disseram mais de um ministro do STF. Qualquer pessoa comum, submetida a um tratamento desses, depois de algum tempo, assina qualquer coisa para obter a liberdade...
Os absurdos do juiz paranaense em matéria penal rivalizam com suas opiniões sobre matéria econômica. Causam imensos prejuízos materiais ao país. Configurando, de novo, ilegalidades flagrantes. Como se sabe, a Constituição da República consagra a proteção à empresa nacional. Que faz Moro? Destrói a capacidade de concorrência das áreas de projetos e engenharia, inclusive da Petrobrás e das empreiteiras locais, abrindo caminho para a desnacionalização da economia brasileira. Guiado por uma ratio ideológica, o magistrado não distingue – e isso parece proposital – a necessária apuração dos ilícitos penais da necessidade de manter em funcionamento uma estrutura produtiva que responde por mais de 13 por cento do PIB, gerando receitas e empregos para a população. Indagado sobre esse tipo de irresponsabilidade Moro declara – de preferência nos foros empresariais ligados ao PSDB, ao Partido Novo e outras instituições de inspiração neoliberal que freqüenta amiúde – que está combatendo o “custo Brasil”. Na certa, considera ingenuamente que as empreiteiras dos países centrais não pagam suborno... Realmente, com esse grau de alinhamento ideológico e partidário torna-se muito difícil fazer funcionar a contento um poder da importância do judiciário.
O samba das instituições brasileiras anda “atravessando” o enredo. Haverá esperança? Talvez. O pronunciamento da ministra Rosa Weber, ao inviabilizar a chicana regimental de Eduardo Cunha na tramitação do pedido de impeachment da Presidenta Dilma, revelou um novo caminho: o da afirmação de uma ética de Estado infensa a partido e governo. Quem sabe seja possível salvar a bela construção democrática aberta nos últimos 30 anos? Sonhar não custa nada e sonhos podem ser bem reais, como dizia o poeta popular.
(*) Refere-se ao texto Uma crise estrutural e política: publicado embaixo, neste blog, e no jornal Algo a Dizer (N.E.)

 

22 de novembro de 2015

No ar, a edição de OUTUBRO do jornal Algo a Dizer


Está no ar a edição de OUTUBRO do jornal de Cultura e Política Algo a Dizer, com o seguinte conteúdo:

1- Entrevista com o geógrafo marxista inglês David Harvey aborda o tema do crescimento urbano desordenado;

2- Marcelo Barbosa mostra como os impasses da política e da economia brasileira são fruto do ataque da direita ideológica às conquistas populares contidas na Constituição de 1988;

4- O belo texto de Maria Luiza Franco Busse fala de relações homoafetivas e seus direitos;

6- A pungente crônica de Cinthya Nunes, O Patinho, a vida e a morte;

7- Jorge Nagao e sua divertida crônica sobre o viver o momento;

8- Três haikais subversílabos, de Antonio Barreto;

9- Ensaio de Carlos Russo Jr sobre Sidarta Gautama.

Boa leitura e um abraço

Kadu Machado
(21) 99212-3103

20 de novembro de 2015

Uma crise estrutural e politica


Por Marcelo Barbosa
Karl Marx passou a vida adulta inteira combatendo certas leituras feitas em seu nome, nas quais o fator “econômico” excluiria todas as demais mediações da realidade social. Seu principal colaborador, Frederic Engels, visando recuperar a verdadeira dimensão dialética do método criado pelo autor de O Capital, colocou o debate em suas devidas proporções: “Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância, na história, é a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos mais. Se agora alguém torce isso (afirmando) que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda”.

Não obstante esses esclarecimentos, boa parte das correntes e militantes políticos (de alguma maneira referenciadas no marxismo) continuaram a enxergar a política como um “reflexo” automático da economia. Isso aconteceu no passado, mas também na atualidade. Prova disso consiste na maioria das interpretações acerca das raízes da atual crise política em andamento no país. Quase todas as hipóteses atualizam essa lógica não digo de preponderância, mas de exclusividade, do fator econômico.

Essa “carapuça” teórica serve para todo mundo, inclusive para mim. Sinto enormes dificuldades para enxergar os contornos políticos da presente conjuntura. Ainda mais quando se sabe que a origem dos atuais desequilíbrios exibe forte conexão com a (des)ordem financeira mundial instalada desde 2008, com seus desdobramentos locais, no Brasil.

Mesmo assim, em meio a toda ofensiva dos setores neoliberais – que conseguiram submeter o governo do PT e seus aliados a um cerco – ainda existe um aspecto pouco explorado na análise dos setores progressistas: o papel da Constituição da República na atual crise política. Ou seja: em que medida a instabilidade institucional experimentada pelo país não é fruto das tentativas do “núcleo duro’ da direita, isto é, a coalizão PSDB-DEM, de destruir o pacto político inaugurado em 1988? Caso essa pergunta detenha alguma pertinência, a duração do quadro presente se deslocaria no tempo, adotando uma feição de médio e longo prazo.

Já se discorreu – e muito – sobre o conteúdo democrático e avançado da constituição de 1988 (com todas as insuficiências de uma carta ainda inscrita no âmbito do sistema capitalista). Não convém repetirmos as avaliações. Trata-se apenas de fixar a sua dimensão mais destacada: a de regramento democrático para a luta política de classes em curso na sociedade.
A verdade é que, sob a égide da constituição atual, importantes vitórias políticas foram obtidas, como a eleição e a continuidade de governos progressistas nos últimos 13 anos e, no plano social, o tímido, mas importante, combate à desigualdade.
O prosseguimento dessa dinâmica não interessa ao setor mais organizado da direita brasileira. Com isso, de forma surda, germinou um mal-estar de longa duração tornado insuportável ao momento: essa crise é marcada pela existência de uma superestrutura (com toda conotação problemática do termo) jurídica voltada para a ampliação da democracia política e da justiça social em contradição com a base material de uma sociedade das mais desiguais do mundo.

Pelo visto, o país atravessa o momento mais agônico desse impasse. Que vai se resolver pela afirmação da atualidade dos princípios coordenadores da Constituição de 1988 ou por sua transformação em letra morta, como querem os seus detratores.

Alguma dúvida?
Em 2015, todo o esforço de elaboração legislativa da parcela mais orgânica da direita brasileira visou o ataque a direitos coletivos, apenas passíveis de revogação por meio de alteração expressa da Constituição ou violação de suas diretrizes. As centenas de PECs, projetos de lei, regulamentações convergiram para quatro eixos: diminuição da maioridade penal, apoio à terceirização das atividades laborais, financiamento empresarial de campanhas políticas e modificação no regime de exploração do petróleo.
Isso sem mencionar a expectativa da reação em favor de um impeachment da presidente Dilma sem a menor correspondência ante às exigências previstas na Lei Maior.

Em todos os casos citados, a postura da administração Dilma foi a da defesa da legalidade, ora manifestando-se contrária às agressões ao texto constitucional, ora exercendo veto sobre as matérias aprovadas pela maioria de ocasião no Congresso. Assim, apesar do apoio ao chamado “ajuste fiscal”, o Poder Executivo tem se manifestado como guardião da ordem social avançada prevista na Constituição da República (com menos vacilações que o Judiciário e sem o golpismo do legislativo).

Com base, portanto, na observação dos resultados da luta, que mobilizou ruas e instituições ao longo desse ano, uma pergunta amadurece nas consciências: não está na hora da agenda de longo prazo, orientada para a preservação e ampliação dos direitos, prevalecer sobre as exigências de uma “austeridade” econômica sem viabilidade, em tudo e por tudo, incompatível com preceitos derivados do pacto político promulgado em 1988?

Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ e diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX

 Promulgação da Constituição de 1988