Por Marcelo Barbosa, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande (ICG)
Logo de cara, vou dizendo: não veio da minha cabeça a idéia
de realizar o ato de repúdio ao atentado do Charlie Hebdo – evento
realizado na última quarta, 14/1, no Casa Grande. Quem bolou a atividade
foi o Saturnino Braga, acolitado pelo Moysés Achenblatt e o Kadu. Por estar
viajando, praticamente soube da programação no dia. Caso tivesse sido
consultado previamente, talvez votasse contra ou, no limite, defendesse um
outro formato para a discussão.
E, sinceramente, estaria comentando um grande erro.
Na realidade, a mesa redonda composta pelos humoristas
Jaguar, Marcelo Madureira, Ziraldo e Miguel Paiva (com a presença do cônsul-geral
da França no Rio) travou um debate – não dá para economizar no adjetivo – memorável.
Uma coisa no limite da rispidez, com uma platéia dividida, de nervos à flor da
pele. Não fosse a habilidade de nosso senador Saturnino, na condução da
conversa, faltaria pouco para a turma sair tapa.
Não podia ser diferente. O massacre de Paris machucou a
consciência do mundo inteiro, criou perplexidade, e até o momento ninguém sabe
o lado certo onde e a quem tributar a solidariedade.
Por isso respeito muito os companheiros que compareceram ao
Teatro naquela tarde. Eles foram corajosos ao extremo. Minha consideração vai
tanto para a turma do “je suis Charlie” quanto para a galera do “não sou
Charlie nem que a vaca tussa”.
Agora, não tenho nenhuma consideração por aqueles que
ficaram intrigando pelos cantos, fazendo fofoca pelas redes sociais. Uns caras
que tiveram a cara de a pau de insinuar que o Instituto Casa Grande (ICG) tinha
passado para o lado da direita, do sionismo, ou de qualquer instância do mal
que a mente paranóica dessa gente pudesse conceber.
Alto lá companheirada, estamos do mesmo lado!
A coisa ficou confusa... vamos ser mais solidários entre nós
mesmos...
Não quero ser dono da verdade, mas no meio de tanta
incerteza há algumas posições, assim julgo, merecedoras de defesa. E que refletem
divergências com o grupo que fugiu do debate. Digo isso no meu nome pessoal. A
diretoria do ICG não precisa – e nem deve – endossar este ponto de vista.
De início, devo confessar a minha incapacidade de enxergar
o jihadismo na condição de resposta equivocada dos “oprimidos” (sic) ao domínio
militar e político das grandes potências (Estados Unidos, à frente) sobre a
geopolítica do Oriente Médio, Norte da África e Eurásia.
A Al Qaeda???
Os filhotes de Bin Landen et caterva constituem, na
verdade, criaturas de estufa geradas no laboratório do departamento de Estado
dos EUA. Pertencem a uma engenharia genética concebida para pôr fim aos
movimentos democráticos e de esquerda em ascensão no mundo islâmico até a década
de 1980. O grande laboratório dessa praga, hoje se sabe, foi a guerra do
Afeganistão. Naquele canto da Ásia Central inaugurou-se – sob o patrocínio da
CIA – a política de apoio ao Taliban. Sob o pretexto de combater o “Império do
Mal” Soviético, jorrou dinheiro e armamento para os mujahidin. O problema, hoje
em dia, é que a criatura saiu do controle do criador e exibe uma agenda própria.
Virou um espantalho que, oportunamente, deve ser exibido pelos países da coalizão
da Otan e de Israel para justificar a política de “guerra ao terror”.
Outra questão diz respeito à liberdade de expressão.
Contrariamente ao senso geral vigente entre as pessoas de
esquerda, considero esse um direito e garantia individual – especialmente no
que toca ao trabalho da imprensa – um princípio a ser exercitado de forma quase
irrestrita. A má-fé eventual, o mau gosto e o excesso, por certo, existem. Porém,
devem ser limitados pela lei. E apenas pela lei.
Por mais respeito que se possa nutrir pelas religiões, o
direito de opinião não pode ser regulado pela Bíblia, o Alcorão ou a Torah, ou
qualquer outra grande narrativa confessional. Pelo menos nunca em uma sociedade
democrática na qual o Estado já se separou da religião.
Da mesma maneira, não se deveria aceitar a censura sobre o
trabalho dos humoristas. A crítica promovida por esses artistas cumpre uma
inestimável função social importante. Mesmo quando irresponsável e anárquica. A
justiça está aí para definir quando a piada atravessa a fronteira da irreverência
para penetrar no terreno da discriminação. Gays, nordestinos ou negros – entre
outros setores oprimidos – têm todo os direito de se sentirem discriminados
pelo tipo de comédia encenada por um babaca como o Danilo Gentilli. Mesmo
assim, ninguém vai defender que a gente crie um comando para invadir os estúdios
da TV e esvaziar um pente de AK-47 na cabeça desse infeliz...
A última “queixa”, digamos assim, chega a ser engraçada.
Fomos acusados de “elitistas” por promover um ato de solidariedade à França, um
país rico. O que os nossos críticos não sabem é que a realidade comprova o
oposto. Em seus quase cinqüenta anos de existência, o Casa Grande se
distinguiu, entre outras facetas, pela realização de palestras, debates e
discussões em defesa dos povos de todo o chamado Terceiro Mundo, incluindo a África
e a nossa tão sofrida América Latina. A paz no Oriente Médio e o direito à criação
de um Estado Palestino jamais foram esquecidos.
Diante de uma trajetória tão marcada pelo apoio às populações
oprimidas, o ato do dia 14/1 constituiu uma exceção apenas aparente: não
prestamos nossos respeitos ao governo Francês, que promoveu a lamentável
passeata de terroristas de Estado, no Champs Elisée, com Cameron e Netanyahu, à
frente; prestamos solidariedade, isto sim, ao povo da França. Ao povo que, com
sua criatividade e engenho, deu ao mundo o romance de Victor Hugo e Balzac, o
cinema de Truffaut e Goddard, o pensamento crítico de Sartre e Beauvoir, entre
outras contribuições.
Mais que tudo, nossa solidariedade vai para o povo que
criou, nas jornadas de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
que consagra como o primeiro dos direitos, o direito à vida.
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