23 de janeiro de 2015

Coisas que aprendi no ato de solidariedade ao Charlie Hebdo, no Casa Grande

Por Marcelo Barbosa, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande (ICG)
Logo de cara, vou dizendo: não veio da minha cabeça a idéia de realizar o ato de repúdio ao atentado do Charlie Hebdo – evento realizado na última quarta, 14/1, no Casa Grande. Quem bolou a atividade foi o Saturnino Braga, acolitado pelo Moysés Achenblatt e o Kadu. Por estar viajando, praticamente soube da programação no dia. Caso tivesse sido consultado previamente, talvez votasse contra ou, no limite, defendesse um outro formato para a discussão.
E, sinceramente, estaria comentando um grande erro.
Na realidade, a mesa redonda composta pelos humoristas Jaguar, Marcelo Madureira, Ziraldo e Miguel Paiva (com a presença do cônsul-geral da França no Rio) travou um debate – não dá para economizar no adjetivo – memorável. Uma coisa no limite da rispidez, com uma platéia dividida, de nervos à flor da pele. Não fosse a habilidade de nosso senador Saturnino, na condução da conversa, faltaria pouco para a turma sair tapa.
Não podia ser diferente. O massacre de Paris machucou a consciência do mundo inteiro, criou perplexidade, e até o momento ninguém sabe o lado certo onde e a quem tributar a solidariedade.
Por isso respeito muito os companheiros que compareceram ao Teatro naquela tarde. Eles foram corajosos ao extremo. Minha consideração vai tanto para a turma do “je suis Charlie” quanto para a galera do “não sou Charlie nem que a vaca tussa”.
Agora, não tenho nenhuma consideração por aqueles que ficaram intrigando pelos cantos, fazendo fofoca pelas redes sociais. Uns caras que tiveram a cara de a pau de insinuar que o Instituto Casa Grande (ICG) tinha passado para o lado da direita, do sionismo, ou de qualquer instância do mal que a mente paranóica dessa gente pudesse conceber.
Alto lá companheirada, estamos do mesmo lado!
A coisa ficou confusa... vamos ser mais solidários entre nós mesmos...
Não quero ser dono da verdade, mas no meio de tanta incerteza há algumas posições, assim julgo, merecedoras de defesa. E que refletem divergências com o grupo que fugiu do debate. Digo isso no meu nome pessoal. A diretoria do ICG não precisa – e nem deve – endossar este ponto de vista.
De início, devo confessar a minha incapacidade de enxergar o jihadismo na condição de resposta equivocada dos “oprimidos” (sic) ao domínio militar e político das grandes potências (Estados Unidos, à frente) sobre a geopolítica do Oriente Médio, Norte da África e Eurásia.
A Al Qaeda???
Os filhotes de Bin Landen et caterva constituem, na verdade, criaturas de estufa geradas no laboratório do departamento de Estado dos EUA. Pertencem a uma engenharia genética concebida para pôr fim aos movimentos democráticos e de esquerda em ascensão no mundo islâmico até a década de 1980. O grande laboratório dessa praga, hoje se sabe, foi a guerra do Afeganistão. Naquele canto da Ásia Central inaugurou-se – sob o patrocínio da CIA – a política de apoio ao Taliban. Sob o pretexto de combater o “Império do Mal” Soviético, jorrou dinheiro e armamento para os mujahidin. O problema, hoje em dia, é que a criatura saiu do controle do criador e exibe uma agenda própria. Virou um espantalho que, oportunamente, deve ser exibido pelos países da coalizão da Otan e de Israel para justificar a política de “guerra ao terror”.
Outra questão diz respeito à liberdade de expressão.
Contrariamente ao senso geral vigente entre as pessoas de esquerda, considero esse um direito e garantia individual – especialmente no que toca ao trabalho da imprensa – um princípio a ser exercitado de forma quase irrestrita. A má-fé eventual, o mau gosto e o excesso, por certo, existem. Porém, devem ser limitados pela lei. E apenas pela lei.
Por mais respeito que se possa nutrir pelas religiões, o direito de opinião não pode ser regulado pela Bíblia, o Alcorão ou a Torah, ou qualquer outra grande narrativa confessional. Pelo menos nunca em uma sociedade democrática na qual o Estado já se separou da religião.
Da mesma maneira, não se deveria aceitar a censura sobre o trabalho dos humoristas. A crítica promovida por esses artistas cumpre uma inestimável função social importante. Mesmo quando irresponsável e anárquica. A justiça está aí para definir quando a piada atravessa a fronteira da irreverência para penetrar no terreno da discriminação. Gays, nordestinos ou negros – entre outros setores oprimidos – têm todo os direito de se sentirem discriminados pelo tipo de comédia encenada por um babaca como o Danilo Gentilli. Mesmo assim, ninguém vai defender que a gente crie um comando para invadir os estúdios da TV e esvaziar um pente de AK-47 na cabeça desse infeliz...
A última “queixa”, digamos assim, chega a ser engraçada. Fomos acusados de “elitistas” por promover um ato de solidariedade à França, um país rico. O que os nossos críticos não sabem é que a realidade comprova o oposto. Em seus quase cinqüenta anos de existência, o Casa Grande se distinguiu, entre outras facetas, pela realização de palestras, debates e discussões em defesa dos povos de todo o chamado Terceiro Mundo, incluindo a África e a nossa tão sofrida América Latina. A paz no Oriente Médio e o direito à criação de um Estado Palestino jamais foram esquecidos.
Diante de uma trajetória tão marcada pelo apoio às populações oprimidas, o ato do dia 14/1 constituiu uma exceção apenas aparente: não prestamos nossos respeitos ao governo Francês, que promoveu a lamentável passeata de terroristas de Estado, no Champs Elisée, com Cameron e Netanyahu, à frente; prestamos solidariedade, isto sim, ao povo da França. Ao povo que, com sua criatividade e engenho, deu ao mundo o romance de Victor Hugo e Balzac, o cinema de Truffaut e Goddard, o pensamento crítico de Sartre e Beauvoir, entre outras contribuições.
Mais que tudo, nossa solidariedade vai para o povo que criou, nas jornadas de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que consagra como o primeiro dos direitos, o direito à vida.

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