30 de setembro de 2012

Os Poços fundos da alma (crônica)


Por Denise Ribeiro

“Você não quer ir para Poços de Caldas neste final de semana?”. Pega assim de surpresa com a pergunta, ela não soube nem o que dizer. Do outro lado da linha, a amiga de uma amiga, que trabalha com turismo e nunca a viu mais gorda, espera a resposta.
Fica imaginando que a moça está caçando turistas a unha, oferecendo o “pacote” para o açougueiro, a feirante da barraca de frutas, a comadre da igreja. Balbucia um “não” desengonçado, agradece e desliga meio ofendida com a falta de senso da mulher. Então você sai por aí convidando qualquer um e todo mundo para uma viagem, sem conhecer o perfil do seu cliente em potencial?
Só mesmo quem nunca tivesse trocado meia dúzia de palavras com ela poderia imaginar que se animasse com um destino tão pouco desejável quanto Poços de Caldas. Talvez daqui uns 30 anos, quando tivesse uns 80 e uma coleção de artroses berrando por um recanto confortável. Sim, Poços é uma cidade agradável, bonitinha, mas sem atrativos que mobilizem seus sentidos.
Justo ela, que gosta de cidades pulsantes, que sonha em revirar o mundo do avesso, iria investir tempo e dinheiro indo para Poços de Caldas? Ora, por favor, reclama alto, numa indignação dirigida a todos os conformados do planeta.  Sim, porque ela classifica de mesquinha essa gente contida em relação às fronteiras do mundo. E também faz ginásticas mentais para entender a inapetência por viagens de muitas pessoas. Que diabo, passar uma existência inteira dentro dos limites de uma minúscula cidade, sem nunca botar o pé em outro lugar?
Um frio cortante perpassa sua coluna só de se imaginar numa vidinha assim. Afasta o incômodo invocando memórias de viagens: a primeira vez que foi a Paris; o dia em que chorou vendo o original de um quadro de Boticelli num museu em Florença; os jardins encantados de Pedro, o Grande, perto de Leningrado; o relógio da praça central de Praga; as roupas coloridas das mulheres do Uzbequistão; o terror diante do leão, num safári na África do Sul.
Acorda da “viagem” com o toque de telefone. De novo a moça, insistindo em lhe empurrar o pacote, acenando com descontos “imperdíveis”, castigando sua alma de desbravadora com essa lenga-lenga de vendedor despudorado. “Poços?”, pergunta, e, diante do sim da mulher, impõe condições. “Só se forem poços de lágrimas de amor não-correspondido, poços de originalidade, poços de algodão doce, poços de estrelas cadentes, poços de amargura existencial, poços de risos loucos, poços de alquimias de carinho, poços de aurora boreal....”
Diante do mutismo do outro lado da linha, ela desliga o telefone, dá um longo suspiro e se sente plenamente vingada contra a mesmice alheia. Guarda no peito uma ponta de esperança de que seu pequeno ato de rebeldia contamine a alma da moça com um pouco de perplexidade e nonsense poético.

Denise Ribeiro é jornalista (denisemrib@gmail.com)

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