Por Luciano Gruppi
"A análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência
do marxismo."
Lênin
Do estudo do pensamento de Lênin, fica-nos a persuasão de que a
característica mais profunda de seu método, de sua mentalidade, é o sentido da
concreticidade histórica, a consciência da historicidade. “A análise concreta
da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo” (v. 31, p.
135). Essa advertência, que reaparece mais de uma vez, parece-nos
caracterizar o modo pelo qual ele se situa diante do marxismo.
Assim, ele parte — com um emprego do marxismo que já é incrivelmente
maduro — da investigação da específica situação histórica russa, do modo
peculiar pelo qual o capitalismo se desenvolve nesse país. A investigação
da especificidade russa serve-lhe para fundar a posição do proletariado diante
da democracia burguesa, assim como a necessidade da sua hegemonia. Em 1917, ele
vê a articulação singular, original, que se verifica na Rússia entre o poder da
grande burguesia e a ditadura democrática dos operários e dos camponeses; vê o
modo pelo qual o alinhamento das forças políticas cria as condições e põe a
necessidade de que as tarefas da revolução democrática sejam assumidas pela
ditadura do proletariado e resolvidas numa conexão historicamente nova,
original, entre a revolução democrática e a revolução socialista.
A convicção de Marx e Engels de que o marxismo não é um dogma, mas um
método para a ação, é assim em Lênin algo muito forte; trata-se de uma
ideia frequentemente repetida, sobretudo nos momentos de virada histórica e
quando surgem novas situações políticas. É o caso em 1907, quando — após a
derrota da primeira revolução — coloca-se a questão da atitude da classe
operária em face da Duma reacionária; é o caso depois da Revolução de
Fevereiro, quando se trata de passar para a nova etapa da revolução
proletária. A teoria revolucionária não é dada para sempre; ela
generaliza, elevando ao nível da consciência, a experiência histórica.
Todas as vezes que — a história, como Lênin observa, “jamais se repete” — todas
as vezes que se põem à praxis tarefas novas, as conquistas teóricas
alcançadas até aquele momento não bastam mais e colocam-se novas tarefas de
investigação e de elaboração.
O marxismo, portanto, não é uma teoria universal que contenha em si
todas as respostas; não é uma “filosofia da história” da qual possam ser deduzidas
todos os momentos históricos. É o método que permite compreender o processo
histórico em sua determinação concreta. Não é possível nenhuma separação entre método
e teoria.
O método só é tal enquanto se vale de categorias científicas,
resultantes da tomada de consciência dos elementos que constituem o processo da
história. Mas a história não é um fluir indistinto de fatos que devam ser apenas
constatados e aos quais se deva apenas aderir; movida pelo desenvolvimento das
forças produtivas e das relações de produção, pelos alinhamentos de classe
correspondentes, a história se divide em formações econômico-sociais
diversas. Essa categoria de formação econômico-social, definida
pelas leis que a governam, permite compreender a direção de um desenvolvimento
histórico, antes mesmo que suas linhas tenham emergido com plena clareza; mas
não esgota a necessidade de descobrir o modo específico pelo qual uma formação
econômico-social se realiza nas diferentes situações. Na noção de formação
econômico-social, na consciência da historicidade das leis econômicas, do
caráter dinâmico dos sistemas econômicos, na conexão que estabelece entre
análise econômica e análise sociológica e política, consistem a cientificidade
do marxismo.
Nisso reside sua capacidade de descobrir as características concretas do
processo histórico.
No interior de uma formação econômico-social geral (por exemplo: a
capitalista), especificam-se os diversos processos de desenvolvimento dessa
formação: a especificidade nacional, a especificidade dos alinhamentos de
classe, a singularidade das situações e dos eventos políticos. Só se faz
política, praxis transformadora, quando há utilização das categorias
constitutivas da formação econômico-social com o objetivo de descobrir as
formas concretas através das quais ela se desenvolve.
Reside também aqui o fundamento científico da política proletária, que
se faz guiar por categorias científicas e que as verifica na praxis.
Mas, precisamente porque a formação econômico-social representa o modo
pelo qual se demarca o desenvolvimento histórico, ela deve ser captada em seu
desenvolvimento, em suas transformações. É assim que Lênin — que
compreendeu a concreticidade de uma situação histórica determinada (russa)
graças à aplicação das categorias científicas do marxismo — se eleva à
compreensão da nova fase do desenvolvimento da formação econômico-social
capitalista: o imperialismo.
O processo histórico é concebido em sua totalidade, na relação de
estrutura e superestrutura, na conexão entre economia e política. Se Marx
nos dá a estrutura do capitalismo — observa Lênin — emprega ao mesmo tempo as
categorias constitutivas dessa estrutura para a compreensão dos
desenvolvimentos reais, da atitude das forças políticas, da função das
personalidades individuais.
Para Lênin, o momento decisivo é o da política. É o caso quando,
diante da Revolução de 1905, critica os neo-iskristas por não compreenderem a
função dos partidos, que intervêm ativamente no desenvolvimento histórico, por
não terem entendido as teses de Marx sobre Feuerbach, por terem rebaixado o
materialismo histórico a um materialismo pré-marxista, metafísico. É o
caso depois da Revolução de Fevereiro, quando a atitude a assumir é sugerida
antes de mais nada pelo juízo sobre o alinhamento político. É sempre o
caso. Mas a política só decide na medida em que implica a compreensão da
situação objetiva, empregando categorias científicas, reportando-se à estrutura
que governa o processo histórico.
Há uma conexão dialética entre economia e política, estrutura e
superestrutura, situação objetiva e iniciativa revolucionária, objeto e
sujeito. Se considerarmos o conjunto do pensamento de Lênin, veremos que a
atenção se volta sempre para a dialética: dialética dos processos reais, modo
pelo qual se manifesta neles a contradição, relação entre todos os elementos
que a constitutem, conexão entre situação objetiva e iniciativa
política. A política só é plenamente tal, só atinge uma fundamentação
científica própria, se for guiada pela teoria, pelo conhecimento das leis que
governam o desenvolvimento histórico e das categorias que devem ser aplicadas à
análise das situações concretas. Mas, precisamente por isso, a política —
fundada pela teoria — por sua vez funda essa teoria, a verifica, exige seu
desenvolvimento, num constante reexame crítico. A política representa a unidade
entre a teoria e a ação, a mediação entre elas.
A estreita relação entre a teoria e a ação, a permanente preocupação
política, prática, que guia todos os momentos do pensamento de Lênin, a
estreita adesão à concreticidade da história, torna esse pensamento — como
esperamos ter conseguido demonstrar — extremamente rico e articulado.
Disso resulta a impossibilidade de reduzir sua concepção (ou, mais
exatamente, o desenvolvimento de sua concepção) a algumas obras, por mais
importantes que sejam. Assim, para darmos um exemplo, não entenderemos sua
concepção do imperialismo, em toda sua riqueza, se nos limitarmos ao famoso
ensaio, embora seja o escrito mais importante sobre o assunto, e se não
considerarmos as análises desenvolvidas em outros textos sobre o capitalismo
monopolista de Estado. Do mesmo modo, não entenderemos sua concepção do
Estado se nos limitarmos a O Estado e a Revolução. Se nos
referirmos só a algumas obras, correremos o risco de incidir em graves
equívocos, em perigosas simplificações do seu pensamento.
Mas, sobretudo, nada — ou quase nada — compreenderemos da sua ação e dos
seus escritos se não os situarmos no momento histórico e político a que eles se
referem, se não esclarecermos qual era o fim político, prático, ao qual sempre
tendiam de modo consciente. Ele mesmo o diz, num prefácio a seus escritos,
datado de 1907: “O erro fundamental em que incorrem hoje os que polemizam com o
Que Fazer? está no fato de que esse escrito é inteiramente separado de
sua conexão com uma situação histórica determinada, com um período determinado”
(v. 13, p. 89).
Uma daquelas ironias da história, às quais Lênin gosta de se referir,
terminou por fazer com que precisamente seu pensamento — e, mais ainda,
momentos de seu pensamento — fossem absolutizados, prescindindo-se do seu
condicionamento histórico-político, tomando-se esse pensamento ou esses
momentos isolados dos desenvolvimentos que as concepções leninianas conhecem em
outros momentos e escritos.
O fato é que, quando de sua morte, a áspera luta política (e
consequentemente teórica) que se travou no Partido Comunista Russo
(bolchevique), envolvendo alguns temas decisivos para a vida do regime
soviético, teve de tomar como referência — o que era não só inevitável, mas
também justo — os ensinamentos de Lênin. Condição para que uma tese se
afirmasse sobre outra foi a de que aparecesse como a interpretação mais fiel e
consequente do pensamento de Lênin: e aqui se foi além do que era justo. A luta
política, assim, transformou-se também em luta por uma determinada
interpretação de Lênin. Formulações que eram desenvolvimentos da teoria
revolucionária em comparação com o pensamente do Lênin, desenvolvimentos
exigidos por situações novas, eram ao contrário apresentadas pura e
simplesmente como teses do próprio Lênin. Foi o caso, por exemplo, da teoria
do socialismo num só país, cuja possibilidade está contida nos últimos
escritos — em particular em Melhor pouco mas bom —, mas apenas a
possibilidade e não a afirmação explícita. A afirmação de que o socialismo
pode vencer “primeiro” em alguns ou mesmo em um só país — contida em Os
Estados Unidos da Europa — é invocada como a prova de que a teoria do
socialismo num só país já estava presente em Lênin. E deixou-se de lado o
“primeiro”, assim como o fato de que ele não especificou de que países se
pudesse tratar.
Em suma, toda uma série de momentos do pensamento de Lênin foram
absolutizados, destacados da situação concreta de onde surgiram e para a qual
se dirigiam. Enquanto isso, outros momentos foram deixados na sombra ou
esquecidos.
Mestre desse modo de “utilizar” Lênin foi indubitavelmente
Stalin. Não se pode negar, ao seu modo de interpretar o pensamento de
Lênin, força teórica e extrema lucidez, notabilíssima capacidade de
síntese. É preciso reconhecer que “acertar contas” com Lênin,
confrontar-se na base de uma interpretação do seu pensamento, assim como
“sintetizá-lo”, era naquele momento uma necessidade. É isso tanto para a
luta política que então se travava, quanto em função da necessidade de formar
teoricamente uma grande massa de quadros e de militantes, não só soviéticos,
mas de outros países, provenientes dos mais variados ambientes políticos e
culturais e geralmente pouco aparelhados culturalmente. Assim,
interpretação para os fins da luta política e difusão e divulgação se
articulavam como dois momentos igualmente necessários. Mas, desse modo,
perdia-se grande parte da rica articulação do pensamento e da ação de
Lênin. Sua concepção é simplificada, empobrecida, em grande parte
deformada.
Tomemos, como o exemplo mais rico de consequências e mais significativo,
a “síntese” da concepção de Lênin contida nas lições de Stalin sobre os Princípios
do Leninismo. Trata-se, em seu gênero, de uma obra prima de síntese
teórica, de precisão e de clareza. Não se poderia explicar de outro modo
sua enorme influência. Mas quanto se perde da “polpa” nessa tentativa de
reduzir a concepção leniniana à sua estrutura essencial? E quantas
deformações são assim introduzidas na concepção de Lênin?
Vejamos alguns exemplos. “Lênin chamava o imperialismo de
‘capitalismo moribundo’” (As questões do leninismo, Edições em Línguas
Estrangeiras, Moscou, 1946, p. 11). As contradições do imperialismo
“transformaram o ‘florescente’ capitalismo de outrora em capitalismo moribundo”
(Ibdem, p. 12). Ora, como vimos, a concepção de Lênin sobre o
imperialismo é bem mais rica e dialética. Decerto, o imperialismo é a fase
de putrefação do capitalismo; mas é também a fase de seu máximo
desenvolvimento, a fase na qual têm lugar também grandes possibilidades de
desenvolvimento tecnológico e produtivo. Precisamente por isso, porque o
imperialismo é o momento do máximo desenvolvimento do capitalismo, ele é também
o momento de sua crise e de sua putrefação. É perdida assim toda uma
dimensão do pensamento de Lênin. Toda a compreensão da complexidade e
contraditoriedade de um desenvolvimento econômico-social é simplificada. E
pode-se bem compreender as consequências disso para um estudo objetivo do
capitalismo nessa fase, o empobrecimento que resulta para a luta política e
para o desenvolvimento da teoria.
E mais: destaca-se apenas um momento da ditadura do proletariado, o
momento da violência exercida sem nenhuma limitação legal. Trata-se, sem
dúvida, de um elemento essencial da teoria de Lênin. Mas, como vimos, não
é o único. A noção de ditadura do proletariado conheceu em Lênin, à medida
que ele insistia cada vez mais no momento da direção, uma articulação bem mais
complexa. Deve-se notar que, enquanto Lênin insistia cada vez mais sobre a
ditadura do proletariado como capacidade de direção, de educação, de persuasão,
à medida mesmo que se iam colocando as tarefas construtivas do poder, Stalin —
numa fase posterior, quando as tarefas do poder soviético tinham se tornado
cada vez mais positivas — insiste, ao contrário, na violência, no momento que
Lênin pusera em evidência sobretudo no período mais áspero da guerra civil, negligenciando
os demais aspectos. As razões e as consequências políticas desse modo de
interpretar a teoria leniniana da ditadura são de fácil compreensão.
É assim deixada na sombra a insistência com a qual Lênin afirma que, com
a ditadura do proletariado, o Estado começa imediatamente a se
extinguir. O fato de que logo após a tomada do poder e na época de Stalin,
numa situação de isolamento do Estado soviético e não de rápida extensão da
revolução, a questão não pudesse mais ser colocada desse modo é algo
evidente. Mas aqui não nos encontramos diante de um confronto teórico,
avaliado em relação à diversidade de situações, mas simplesmente diante do
cancelamento da questão. E isso não deixa de ter profundas consequências,
já que — quando as condições históricas não permitem (como não permitiam) uma
rápida extinção do Estado — perde-se uma das características essenciais do
regime socialista, isto é, a gradual identificação do poder estatal com o
autogoverno da sociedade; é assim uma das razões fundamentais da sua
democraticidade que se perde. Com isso, recusa-se ver como a construção do
socialismo em um só pais, ainda que obrigatória, alterou algo essencial na
concepção que Lênin (reportando-se a Marx e Engels) tinha da “primeira fase do
comunismo”. O fato é que a maneira pela qual Lênin é agora tratado torna
impossível uma real confrontação teórica. Os textos de Lênin são cada vez
mais assumidos como o critério da verdade. O critério da verdade
transfere-se da praxis para os “clássicos” do marxismo. Na realidade,
o critério da verdade é estabelecido segundo o modo pelo qual Stalin
interpreta Lênin; e cada vez mais se transferirá, de modo imediato, para as
afirmações de Stalin.
Para Lênin, o partido é sem dúvida o momento mais alto da consciência de
classe em comparação com as outras organizações da classe operária. Em
Stalin, essa concepção se converte numa rígida hierarquização das relações e
num substancial empobrecimento da articulação das diversas organizações do
poder proletário. “O partido — diz Stalin — [...] é a única organização capaz
de centralizar a luta do proletariado e, portanto, de transformar as
organizações proletárias apartidárias [...] em órgãos auxiliares e em correias
de transmissão que ligam o partido à classe” (Ibdem, p. 84). Ora, o
conceito de “correia de transmissão” está certamente presente em Lênin, em
referência ao sindicato; mas é também verdade que é empregado, entre outras
coisas, para recusar a proposta de sua estatização, para defender a função que
lhe é própria. Lênin não fala de organizações “auxiliares” do partido; ao
contrário, vê o poder soviético apoiar-se num conjunto de organizações sobre as
quais o partido exerce a função dirigente.
Mais tarde, na concepção da unidade do partido, será introduzido
o conceito de monolítico, inteiramente ausente em Lênin, o qual — se
havia insistido sobre a necessária compacticidade do partido — concebera-a
sempre como o resultado de uma confrontação dialética.
Um outro exemplo nos é dado pelo modo de situar historicamente
Lênin. “Entre Marx e Engels, por um lado, e Lênin, por outro, estende-se
todo o período do domínio do oportunismo da II Internacional” (Ibdem, p.
16). O juízo de Lênin sobre a II Internacional, como vimos, era bem mais
rico. Ele indica, em toda uma fase histórica da II Internacional, uma
função positiva, de desenvolvimento do movimento em partidos nacionais, de
difusão do marxismo, e até mesmo de sua defesa frente aos ataques
“revisionistas” de Bernstein. Ao mesmo tempo, vê como as razões do
oportunismo foram se acumulando gradualmente, até determinarem a capitulação de
1914.
Não se pode dizer que a análise histórica de Lênin esgote inteiramente a
questão, que a categoria de “aristocracia operária” explique tudo o que
pretende explicar. Pode-se observar que ele não viu como a “renegação” do
marxismo por Kaustsky tivesse suas raízes no modo pelo qual este interpretara o
marxismo já nos anos anteriores; mas é certo que, em Stalin, encontramo-nos
diante da extrema esquematização de uma avaliação histórica e da profunda
modificação do juízo que Lênin formulara sobre a questão.
Disso resulta o que nos parece ser uma falsificação pura e simples da
inserção de Lênin na história do movimento operário. Trata-se da conhecida
carta de Stalin à revista Proletarskaia Revoliutsia, de 1931, onde ele
afirma: “Todo bolchevique sabe [...] que já muito antes da guerra, mais ou
menos por volta de 1903-1904, quando se formou na Rússia o grupo dos
bolcheviques e pela primeira vez se ouviu falar dos esquerdistas na
social-democracia alemã, Lênin seguia uma linha orientada para o rompimento,
para a cisão com os oportunistas, tanto entre nós, no Partido Operário
Social-democrata da Rússia, quanto na II Internacional, particularmente na
social democracia alemã” (Ibidem, p. 384).
Ora, é fato incontestável que a constituição da fração bolchevique no
POSDR determinou divergências com a II Internacional, a respeito da posição que
essa deveria ter assumido diante dos contrastes no interior da social
democracia russa. E é também certo que a II Internacional e o próprio
Kautsky tinham maiores simpatias pelos mencheviques do que pelos bolcheviques,
e que a razão disso se encontra numa concepção de partido diversa da que Lênin
propugnava. Mas não há um só documento, um só escrito ou discurso de Lênin
onde se revele uma intenção de rompimento. Ao contrário, a orientação de
Lênin se volta no sentido de superar as incompreensões da II Internacional para
com os bolcheviques, de conquistar para eles a plena cidadania naquela
organização, acompanhando esse esforço com a luta contra o
oportunismo. Pode-se dizer que o Lênin de Que Fazer?, e, mesmo
antes, o dos primeiros escritos econômicos, já fosse um marxista bem diverso do
de Kautsky; mas deve-se também acrescentar que, no próprio Lênin, não havia uma
plena consciência dessa diferença, tanto assim que ele continuou a se referir a
Kautsky como à maior autoridade em marxismo; e deve-se ainda recordar,
sobretudo, que mesmo depois, quando a ruptura já ocorrera e a crítica não
poderia ter sido atenuada por motivações políticas, ele continuou a falar com
admiração de textos de Kautsky anteriores a 1914 e a referir-se, sem reservas,
a um período no qual este “ainda era marxista”.
Também no que se refere à social democracia russa, não se deve esquecer
o esforço de Lênin — embora com sucesso pouco consistente — no sentido de
reconstituir a unidade das duas correntes, por ocasião do IV Congresso do
POSDR.
Depois da morte de Lênin, formou-se toda uma tendência a cancelar da
história do movimento operário a II Internacional em seu conjunto, como se se
tratasse de um obscuro parênteses. Ignora-se assim que se Lênin, desde os
primeiros anos, reportou-se diretamente a Marx e aplicou com originalidade o
seu método e a sua teoria, sem deixar-se aprisionar pela mediação de Kautsky,
ele aceitou porém uma certa mediação desse teórico do marxismo. Assim como
também aceitou a de Plekhânov para a luta contra os populistas, embora a tenha
travado logo em seguida de modo original. Aceitou a mediação de Kautsky, tanto
no que se refere à questão agrária quanto à teoria do partido; nesse último
caso, recolheu de Kautsky a tese decisiva segundo a qual a teoria
revolucionária vem “de fora” do movimento operário. A influência
filosófica de Plekhânov continuou a atuar, mesmo depois do rompimento, pelo
menos até Materialismo e Empirocriticismo.
Essa eliminação de qualquer mediação da II Internacional na relação de
Lênin com Marx e Engels foi o momento necessário de uma importante operação
ideológica: a construção da noção de “marxismo-leninismo”. Com essa
fórmula, pretende-se precisamente afirmar a rigorosa continuidade da concepção
e da ação de Lênin com relação a Marx; e, ao mesmo tempo, pretendeu-se dizer
que Lênin imprimiu um vigoroso e consequente desenvovlimento ao marxismo, tal
como a nova fase imperialista do capitalismo tornara necessário. Há nisso
tudo uma profunda verdade, tanto na afirmação de uma rigorosa relação de
continuidade entre Lênin e Marx, quanto na acentuação do valor essencial do
desenvolvimento que ele emprestou ao marxismo. Mas há também uma
simplificação inaceitável. Precisamente a negação da existência de uma
mediação histórica entre Marx e Lênin, que na verdade existiu; e a recusa de
analisar o que essa mediação significou. A consequência foi que depois,
com a noção de “marxismo-leninismo”, terminou-se por apresentar a teoria
revolucionária do movimento comunista como um todo compacto, em si acabado,
capaz de responder a todos os problemas. Perdeu-se de vista a
extraordinária riqueza do pensamento de Marx, Engels e Lênin, as diversidades
que existem entre momentos diversos do pensamento deles e de cada um deles em
particular, assim como o que distingue a personalidade desses
revolucionários. Perdeu-se o sentido da historicidade do marxismo e a
consciência de que era necessário aplicar o método marxista ao estudo da
história do próprio marxismo.
Essa fórmula tornou-se possível por causa de uma certa interpretação de
Lênin que transformava seu pensamento num sentido doutrinário, que o
simplificava e empobrecia. Só se pode falar de “marxismo-leninismo” quando
Lênin é visto através da interpretação de Stalin. Na realidade, o
marxismo-leninismo é essencialmente a interpretação de Lênin que nos é dada por
Stalin1.
Stalin nos deu uma célebre definição do “leninismo”. Como se sabe,
Stalin gostava das definições e possuía uma incomum capacidade didática ao
apresentá-las; não tinha, em face das definições, a prudência e a desconfiança
de Lênin.
“O leninismo é o marxismo da época do imperialismo e da revolução
proletária. Mais exatamente: o leninismo é a teoria e a prática da
revolução proletária em geral, a teoria e a prática da ditadura do proletariado
em particular” (Ibdem, p. 10).
Pode-se observar que nem todo Marx está presente em Lênin, nem toda a
excepcional dimensão de sua visão teórica (e isso mesmo sem levar em conta os
escritos marxianos que Lênin não pudera conhecer). E pode-se observar que
existem em Lênin, além de novos desenvolvimentos da teoria e de novas tarefas
da ação revolucionária por ele enfrentadas, capacidades e sensibilidades que
não existiam em Marx ou que a história não lhe dera ocasião de manifestar.
Não queremos aqui nos deter sobre o modo pelo qual a conexão entre
teoria e ação passa historicamente, com Lênin, a um novo nível e atinge uma
dimensão qualitativamente diversa.
Todavia, Stalin se dá conta — quando fala de "leninismo” — que não
se refere à concepção geral do marxismo que Lênin assumira, mas “ao que há de
particular e de novo na obra de Lênin” (Ibidem, p. 9).
É difícil negar que essa definição de Stalin capte o momento em que
Lênin se insere na história de modo decisivo, um modo que faz dele o grande
dirigente do movimento revolucionário que conhecemos. Desse ponto de
vista, cremos que essa definição possa ser aceita; mas recordando o que o
apodíctico Stalin esquece — algo que Lênin, ao contrário, tinha bem presente:
ou seja, que “todas as definições muito concisas são certamente cômodas, como é
o caso das que resumem o essencial do fenômeno em questão, mas revelam-se
insuficientes quando se trata de deduzir delas os traços mais essenciais do
fenômeno a definir” (v. 22, p. 266). Isso vale também para a definição
staliniana de “leninismo”, que deixa na sombra toda uma série de momentos
essenciais do pensamento de Lênin. Basta pensar na investigação da
especificidade russa, que nos fornece também o exemplo de um método de
investigação aplicável a outras realidades históricas; basta pensar na teoria
do partido, que não pode ser reabsorvida na referência “à teoria e tática da
revolução proletária em geral, da ditadura do proletariado em particular”.
Concluindo: é preciso voltar hoje a uma leitura não dogmática, não
doutrinária de Lênin, mas a uma leitura guiada pelo senso da historicidade,
capaz de estabelecer a colocação histórico-política e a riqueza da articulação
do pensamento e da ação de Lênin. Uma leitura capaz de recuperar a relação
entre método e teoria que lhe era própria e, por isso, a visão crítica do seu
pensamento, única que pode ser fecunda.
Isso significa que é preciso libertar-se da mediação deformante do período
da direção de Stalin, mas sem repetir o erro que Stalin cometeu: o de ignorar
que as mediações existem, não podem ser canceladas; por isso, elas devem ser
também atentamente estudadas, pelo que foram, pelas razões históricas profundas
que as determinaram, já que só assim poderão ser criticamente superadas.
Nota: 1 CF. Valentino
Gerratana. Lo stalinismo teorico. In Rinascita, no 43, ano 26, outubro de 1969.
Fonte: GRUPPI, Luciano. O pensamento de Lênin. Tradução
de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 297-308.
Luciano Gruppi (1920-2003), teórico e dirigente comunista
italiano, escreveu na revista Critica marxista e organizou os últimos
volumes das Obras de Palmiro Togliatti; é autor de uma valiosa Introdução
ao estudo de Gramsci (1987); vários de seus livros foram traduzidos no
Brasil: O pensamento de Lênin, O conceito de hegemonia em Gramsci,
Tudo começou com Maquiavel.
Retirado do site Socialismo e Liberdade.
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