Valéria S. Dantas Lopes
Eu já morri de tristeza, morri de
vergonha e de rir, morri de dor, morri de sede e de fome, já morri de amor...
Qualquer um de nós já usou e usará o verbo ‘morrer’, em
exagero, para intensificar o que se sente impacientemente.
Morrer ou passar dessa para melhor, bater
as botas, vestir o paletó de madeira, esticar as canelas, animar festa no céu,
comer capim pela raiz é estar morto e enterrado. Isso ninguém quer.
A primeira vez
que pensei que morreria, não morri.
Naquela noite fria de junho, com uma arma
apontada pra mim, um dos malvados, o moreno sem rosto, segurava meu braço,
indeciso se me levava ou não junto com seu parceiro louro, também, sem rosto.
— Vamo levá ela! — instigou o louro.
Tremi, gelei, sobrevoei o chão numa nuvem
cinza... Ele queria morte. Vi isso na sua voz irritante e insistente, ouvindo
as faíscas que saíam de sua boca enorme.
— Tem segredo? — o moreno me sacudiu.
Eu tinha segredos, sim, mas o carro tinha
apenas um que lhe disse num fôlego só:
“O senhor precisa pisar na embreagem pra
ele ligar. Só isso.”
— Se esta merda não ligar dá um tiro
nela! – disse o louro, querendo ver sangue, enquanto o moreno me segurava
ainda, mas já sentado no banco.
Eu rezava ou gemia calada ou fazia
qualquer coisa que não sei o que era. A atmosfera pesada me impedia definir
qualquer sensação.
O motor soou alto, o moreno sem olhos,
sem nariz, mas com dentes e boca , me sorriu amargo, soltou meu braço e antes
de ir, me falou rispidamente:
— Se eu parar mais à frente, volto pra te
matar.
Morri antecipadamente. Meus pés flutuaram
novamente. E se foi, sem tempo de me despedir da minha bolsa preta de camurça e
franjas no banco de trás. Em tempo de eu ver os fios louros do carona, balançar
ao vento com a arrancada. Em tempo de ver meu possante verde, pela última vez,
que sumiu na poeira, sob a cantoria dos pneus.
A segunda vez que
pensei que morreria, não morri.
Naquela noite amena de outubro, o lugar
era o mesmo, a arma era outra. As pessoas eram outras. Nem uma nem duas, mas
cinco. Quando estacionei, um carro parou próximo ao meu e pensei que eram
convidados da festa, assim como eu.
“Mas convidados não trazem armas de
presentes..." Pensei ao ver o cano longo na mão de um rapaz que eu via da
cintura pra baixo, vindo na minha direção.
Não sei com que mãos abri a porta e com
que pernas saí do carro. Só sei que já estava com as chaves estendidas para ele
antes que me dissesse qualquer palavra. Aparentemente tranquilo, atrevida, me
atrevi:
“Leve o carro, mas antes posso pegar
minha bolsa?”
— Antes, posso te matar? Cale a boca,
vadia! – me respondeu, irritadíssimo, um outro que estava não sei onde. – Ande!
– sua última fala.
Emudeci. Não sabia se eu ia pra direita,
pra esquerda, se desmaiva ou deixava pra depois, se corria, se chorava, se
gritava... Andei meio torta, meio lenta, meio mole, meio eu, inteira em medo.
Quando ouvi o ronco do motor e o cheiro
de pneus queimados, suspirei
aliviada.
A terceira vez que
pensei que morreria, não morri.
Não tinha armas nem homens maus. Mas foi
pior, muito pior.
Naquela tarde fria de junho, achei que
tinha morrido de verdade.
Um caminhão tanque tombou e deslizou na
estrada, na pista contrária, derrubando parte da mureta de sustentação.
Era branca a cabine.
Era clara e verde a estrada.
Era cinza meu carro.
Era vermelho, azul e amarelo o fogo.
Rodas enormes deitadas sobre o
combustível preto e brilhante esparramado pelo asfalto.
Do lado oposto vinha meu carro,
trepidando por cima dos escombros da mureta. A carreta explodiu uma, duas e
mais vezes e o fogo veio cobrindo com suas cores meu carro cinza, rapidamente.
Eu olhava um ponto fixo no lado direito do vidro.
“Meu Deus, é o fim...” Disse assim com
reticências.
E me vi morta. A pior sensação que senti
na vida.
Passei pelo fogo como numa cena de filme.
Morri?”
Milagre. Estava vivinha da silva.
Olhei ao redor, abri a porta e corri pela
estrada livre, calçando apenas uma sapatilha.
Olhei para trás e vi meu carro preto que
era cinza e a carreta de cabine preta que era branca explodir mais e mais.
Eu sempre acreditei no milagre da vida e,
agora, acredito que se pode nascer de novo.
Valéria
Lopes é escritora
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