30 de setembro de 2012

Eu já me vi morta (crônica)


Valéria S. Dantas Lopes

Eu já morri de tristeza, morri de vergonha e de rir, morri de dor, morri de sede e de fome, já morri de amor...
Qualquer um de nós já usou e usará o verbo ‘morrer’, em exagero, para intensificar o que se sente impacientemente.
Morrer ou passar dessa para melhor, bater as botas, vestir o paletó de madeira, esticar as canelas, animar festa no céu, comer capim pela raiz é estar morto e enterrado. Isso ninguém quer.
A primeira vez que pensei que morreria, não morri.
Naquela noite fria de junho, com uma arma apontada pra mim, um dos malvados, o moreno sem rosto, segurava meu braço, indeciso se me levava ou não junto com seu parceiro louro, também, sem rosto.
— Vamo levá ela! — instigou o louro.
Tremi, gelei, sobrevoei o chão numa nuvem cinza... Ele queria morte. Vi isso na sua voz irritante e insistente, ouvindo as faíscas que saíam de sua boca enorme.
— Tem segredo? — o moreno me sacudiu.
Eu tinha segredos, sim, mas o carro tinha apenas um que lhe disse num fôlego só:
“O senhor precisa pisar na embreagem pra ele ligar. Só isso.”
— Se esta merda não ligar dá um tiro nela! – disse o louro, querendo ver sangue, enquanto o moreno me segurava ainda, mas já sentado no banco.
Eu rezava ou gemia calada ou fazia qualquer coisa que não sei o que era. A atmosfera pesada me impedia definir qualquer sensação.
O motor soou alto, o moreno sem olhos, sem nariz, mas com dentes e boca , me sorriu amargo, soltou meu braço e antes de ir, me falou rispidamente:
— Se eu parar mais à frente, volto pra te matar.
Morri antecipadamente. Meus pés flutuaram novamente. E se foi, sem tempo de me despedir da minha bolsa preta de camurça e franjas no banco de trás. Em tempo de eu ver os fios louros do carona, balançar ao vento com a arrancada. Em tempo de ver meu possante verde, pela última vez, que sumiu na poeira, sob a cantoria dos pneus.
A segunda vez que pensei que morreria, não morri.
Naquela noite amena de outubro, o lugar era o mesmo, a arma era outra. As pessoas eram outras. Nem uma nem duas, mas cinco. Quando estacionei, um carro parou próximo ao meu e pensei que eram convidados da festa, assim como eu.
“Mas convidados não trazem armas de presentes..." Pensei ao ver o cano longo na mão de um rapaz que eu via da cintura pra baixo, vindo na minha direção.
Não sei com que mãos abri a porta e com que pernas saí do carro. Só sei que já estava com as chaves estendidas para ele antes que me dissesse qualquer palavra. Aparentemente tranquilo, atrevida, me atrevi:
“Leve o carro, mas antes posso pegar minha bolsa?”
— Antes, posso te matar? Cale a boca, vadia! – me respondeu, irritadíssimo, um outro que estava não sei onde. – Ande! – sua última fala.
Emudeci. Não sabia se eu ia pra direita, pra esquerda, se desmaiva ou deixava pra depois, se corria, se chorava, se gritava... Andei meio torta, meio lenta, meio mole, meio eu, inteira em medo.
Quando ouvi o ronco do motor e o cheiro de pneus queimados, suspirei
aliviada.
A terceira vez que pensei que morreria, não morri.
Não tinha armas nem homens maus. Mas foi pior, muito pior.
Naquela tarde fria de junho, achei que tinha morrido de verdade.
Um caminhão tanque tombou e deslizou na estrada, na pista contrária, derrubando parte da mureta de sustentação.
Era branca a cabine.
Era clara e verde a estrada.
Era cinza meu carro.
Era vermelho, azul e amarelo o fogo.
Rodas enormes deitadas sobre o combustível preto e brilhante esparramado pelo asfalto.
Do lado oposto vinha meu carro, trepidando por cima dos escombros da mureta. A carreta explodiu uma, duas e mais vezes e o fogo veio cobrindo com suas cores meu carro cinza, rapidamente.
Eu olhava  um ponto fixo no lado direito do vidro.
“Meu Deus, é o fim...” Disse assim com reticências.
E me vi morta. A pior sensação que senti na vida.
Passei pelo fogo como numa cena de filme.
Morri?”
Milagre. Estava vivinha da silva.
Olhei ao redor, abri a porta e corri pela estrada livre, calçando apenas uma sapatilha.
Olhei para trás e vi meu carro preto que era cinza e a carreta de cabine preta que era branca explodir mais e mais.
Eu sempre acreditei no milagre da vida e, agora, acredito que se pode nascer de novo.

Valéria Lopes é escritora

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