30 de setembro de 2012

Casais (crônica)


Por Marilena Montanari

Ela entrou de mansinho, escolheu uma mesa de canto rodeada por algumas plantas onde pudesse ter uma visão de todo o espaço do pequeno restaurante. Ver sem ser vista. Pediu um whiskey sauer e, para espanto dos garçons, avisou que não esperava ninguém. Ficou ali bebericando e observando. Hoje era um dia especial.
As pessoas começavam a chegar.
Um homem grisalho, de jeans e camisa branca impecável entrou abrindo alas para exibir a jovem mulher, linda e grávida, de vestido curto mostrando as pernas bem torneadas. Ele pediu um Prosecco e ela tomou água aromatizada. Assim mesmo, fizeram vários brindes à sua felicidade. Lá ficaram um tempão se amando e conversando enquanto saboreavam a entrada. Ele, todo gentil, vira e mexe afagava o rosto e as mãos da moça com ternura exagerada. Sem dúvida, era o segundo (ou terceiro, quarto...) casamento dele.
Na mesa em frente, acomodaram-se dois rapazes. Falavam uma língua estranha. Russo ou polonês, quem sabe. O mais alto usava cabelo arrepiado com gel, paletó cereja e echarpe colorida. O outro usava rabo de cavalo, tinha a barba por fazer, vestia camiseta branca de gola alta e estava visivelmente irritado. Discutiram muito até as três garrafas de vinho surtirem o efeito desejado. Ela não descobriu exatamente o que eles pediram, mas os pratos vieram tão enfeitados quanto os destinatários.
Esses não tiveram um bom dia na São Paulo Fashion Week, pensou ela.
Ao lado, outro casal compartilhava o cardápio, fazia o pedido e dispensava o couvert. Ele tomou uma tônica com rodelas de limão e ela um suco de laranja. Não trocaram uma palavra. Ela olhava o celular a todo momento, decerto para ver se algum filho ou neto ligaria. Ele olhava impaciente o relógio resmungando alguma coisa sobre o horário da locadora de vídeos. Dispensaram a sobremesa. Depois do café, ele jogou o cartão de crédito sobre a mesa, pediu um palito ao garçom e saiu tateando nos bolsos um urgente cigarro. A mulher ficou ali, sozinha, ainda saboreando seu espresso com creme, distante e entediada, enquanto aguardava a conta.
Casados há muito tempo, foi o diagnóstico.
Perto da porta de entrada, sentou-se um casal vestido modestamente. Esquadrinharam o salão admirados. Via-se que não estavam acostumados a um ambiente desses. Parecia ser uma ocasião muito particular. Olharam o cardápio demoradamente e devem ter achado tudo muito caro. Mesmo assim, ali permaneceram conversando. Em determinado momento, ele tirou do bolso da jaqueta uma caixinha discreta. Um presente de aniversário, talvez. Quando ela retribuiu o mimo, escondido até então numa bolsa enorme, a charada foi desvendada: aniversário de casamento. Não mais que dez anos. Também dispensaram a sobremesa, mas demoraram ainda muito tempo no local, tomando guaraná e coca diet , um penetrando o mais fundo que podia nos olhos do outro.
Uma flecha de inveja e saudade acertou seu coração. Passaram pela sua cabeça todas aquelas comemorações,viagens, festas da sua vida a dois. Mas durou pouco. Haviam construído uma história linda e ele estragou tudo. Dane-se. Ele jogava com o casamento como se estivesse numa quadra de futebol. Um arranhão aqui, uma canelada acolá. Sempre na expectativa de fazer um gol para seu time de autopromoção. Acabou.
Perdida em seus devaneios, não se deu conta de que o restaurante estava quase lotado. Foi aí que avistou aqueles dois, mais ou menos da sua idade, com jeito de quem estava tentando de novo. Meio tímidos, desajeitados, mais gesticulavam do que conversavam. Ele pigarreava muito, talvez mais pelo nervosismo do que pela herança que o tabaco possa ter deixado.
E aí, respirou aliviada. Também ela teria outras oportunidades que valessem a pena. Uma companhia, um amigo. Nada que a trancasse na rotina nem que a cobrisse de exigências. Novos ares, sensações inéditas.
Satisfeita consigo mesma, pediu um talharim de pupunha com manteiga de camarão e molho de açaí, sorriu para todos e, meio alegrinha por causa do álcool, fez um autobrinde sincero a seu aniversário de descasamento.

Marilena Esberard de Lauro Montanari é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Tem artigos espalhados em revistas e folhetins; atua em empresas como consultora para a produção de textos e instrutora de cursos de Redação e Gramática. Publicou o fichário SOS-Língua Portuguesa, em parceria com Edna Maria Barian Perrotti

Um comentário: